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Antes de adentrarmos no assunto principal desse artigo, a responsabilidade civil do médico, é preciso tecer alguns comentários sobre a relação médico-paciente e sua evolução.

A Evolução da Relação Médico-Paciente

Adotaremos a classificação proposta pelo professor Robert Veatch, do Instituto Kennedy de Ética da Universidade Georgetown, que se divide em quatro modelos:

  1. sacerdotal;
  2. engenheiro;
  3. colegial e
  4. contratualista.

O objetivo desse texto não é um aprofundamento no contexto evolutivo da relação médico-paciente, tampouco esgotar assunto tão rico.

O que nos interessa saber a respeito da classificação acima é que, em um primeiro momento, existia a hierarquia do médico em relação ao paciente na tomada de decisões.

Posteriormente, invertem-se os papéis, e o paciente é o detentor das rédeas de seu tratamento, tomando decisões, de forma que a responsabilidade civil do médico é reduzida.

Note-se que, nos modelos descritos acima, há baixíssimo envolvimento entre o médico e seu paciente. Foca-se, inicialmente, somente na técnica e na cura e, em um segundo momento, apenas em cumprir as ordens do paciente, que é o responsável pela escolha do tratamento.

No terceiro modelo, o colegial, há profundo envolvimento entre médico e paciente, sendo a tomada de decisão igualitária e compartilhada. Neste modelo não há, portanto,  hierarquia.

E, por fim, com o avanço das relações negociais, chega-se ao modelo contratualista, que é o então vigente.

Embora não seja o único modelo atualmente proposto e defendido, parece-nos o mais adequado.

O MODELO CONTRATUALISTA

Ao analisarmos a realidade da relação médico-paciente, esse modelo se mostra mais justo. Além de prestigiar e valorizar as habilidades do médico, preservando sua autonomia, não ignora a vontade e participação do paciente.

Não estamos, portanto, diante de um contrato de adesão, onde as cláusulas e dúvidas não se pode discutir cláusulas, muito pelo contrário. O respeito e o tratamento humanizado devem partir de ambos os lados da relação.

O modelo contratualista funda-se no livre consentimento informado do paciente. Quer dizer: é indispensável que o médico explique ao paciente, clara e objetivamente, todas as dúvidas relacionadas ao procedimento que se pretende realizar.

Informar, minuciosamente, os benefícios e, sobretudo, riscos e precauções essenciais, é imprescindível, assim como explicar as consequências da recusa do tratamento.

Nesse cenário, o médico deve submeter o termo de consentimento ao paciente a fim de instruir a sua decisão.

O consentimento informado possui, assim, papel determinante no trabalho do médico, pois, em determinados casos, pode eximi-lo de responsabilidade por uma intercorrência negativa ou levá-lo a uma condenação que evitável.

A jurisprudência majoritária determina que o consentimento informado deve ocorrer em sua forma escrita, e não apenas falada.

Em Direito, costuma-se dizer que aquilo que não está nos autos (do processo) não está no mundo, ou seja, se não for possível comprovar, o médico terá comprometido sua própria segurança jurídica.

Assim como a relação médico-paciente evoluiu até o modelo contratualista, a responsabilidade médica também evoluiu ao longo dos séculos.

A EVOLUÇÃO DA RESPONSABILIDADE MÉDICA

Na sociedade primitiva, aplicava-se ao médico dito infrator o Código de Hamurabi. Sua inobservância gerava responsabilização penal com base na famosa Lei de Talião (olho por olho e dente por dente).

Posteriormente, evoluímos para os primeiros passos de uma concepção de responsabilidade civil, em substituição à responsabilidade penal.

Ilustra-se, na passagem abaixo, a partir de um caso narrado por Newton Pacheco e transcrito por Miguel Kfouri Neto, no livro institulado Responsabilidade Civil do Médico, em relação ao método de apreciação das Cortes francesas da responsabilidade médica, vejamos:

Referido autor passa a narrar, então, a verdadeira revolução operada na jurisprudência francesa, de 1832 em diante, desencadeada a partir do processo em que sobressai a atuação do Procurador Dupin: ‘O caso, em resumo, foi o seguinte: O Dr. Helie de Domfront foi chamado às seis horas da manhã para dar assistência ao parto da Sra. Foucault. Somente lá se apresentou às nove horas. Constatou, ao primeiro exame, que o feto se apresentava de ombros, com a mão direita no trajeto vaginal. Encontrando dificuldade de manobra na versão, resolveu amputar o membro em apresentação, para facilitar o trabalho de parto. A seguir notou que o membro esquerdo também se apresentava em análoga circunstância, e, com o mesmo objetivo inicial, amputou o outro membro. Como consequência, a criança nasceu e sobreviveu ao tocotraumatismo. Diante de tal situação, a família Foulcault ingressa em juízo contra o médico. Nasceu daí um dos mais famosos processos submetidos à justiça francesa.

A sociedade dividiu-se. A Academia Nacional de Medicina da França pronunciou- se a favor do médico e, solicitada pelo Tribunal, nomeou quatro médicos, dos maiores obstetras da época. O resultado do laudo foi o seguinte: 1. Nada provado que o braço fetal estivesse macerado; 2. Nada provado que fosse impossível alterar a versão manual do feto; 3. Não havia razões recomendáveis para a amputação do braço direito e, muito menos, do esquerdo; 4. A operação realizada pelo Dr. Helie deverá ser considerada uma falta grave contra as regras da arte.

Apesar da imparcialidade do laudo, a Academia impugnou-o e outro é emitido por outros médicos, que chegam a conclusão contrária à primeira manifestação dos Delegados da Academia.

O Tribunal de Domfront condenou o Dr. Helie ao pagamento de uma pensão anual de 200 francos.

Passa-se, então, a um período de responsabilização civil. Entretanto, realizava-se o julgamento na academia, e a sentença era proferida por outros médicos, não por um tribunal.

Por anos esse modelo permaneceu em vigor, tendo evoluído com a sociedade, a ciência e os avanços tecnológicos a ela aplicados até culminar no modelo atual: a responsabilidade (em regra) subjetiva.

A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO

No ordenamento jurídico brasileiro o médico pode ser responsabilizado civil, administrativa e criminalmente. Sempre por um Órgão Julgador anteriormente constituído.

É importante destacar que essas três esferas, em regra, são independentes entre si.

Foquemos, neste artigo, no aspecto civil da responsabilização.

No processo, para que se caracterize a responsabilidade do médico, que é, em regra, subjetiva, é preciso provar a existência concomitante de três elementos:

  1. Conduta voluntária (ação ou omissão);
  2. Existência de dano (seja ele moral, material, estético ou existencial) e
  3. Nexo de causalidade (é a interrelação que liga a conduta ao acontecimento do dano).

Sem aprofundarmos, nesse texto, os conceitos e meandros desses requisitos, é importante que você, médico, saiba que a famigerada negligência médica também se caracteriza pelo uso de um termo de consentimento genérico.

O “blanket consent”, isto é, o consentimento genérico, em que não há individualização e explicação das informações que o paciente deve possuir para tomar suas decisões e, portanto, dificultando, assim, o exercício de seu direito fundamental à autodeterminação, caracteriza negligência médica por diversos Tribunais de Justiça Estaduais e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ – REsp: 1848862 RN 2018/0268921-9).

Desta forma, considerando-se a natureza contratual da relação médico-paciente, o termo de consentimento informado é parte integrante e imprescindível deste contrato. Por isso, aqui você encontra um modelo completo de TCLE em PDF.

É preciso, ainda, que o médico esteja atento que, embora às relações contratuais que lhe dizem respeito sejam, em regra, apliquem-se as normas de direito civil, existem outras Leis (às vezes menos favoráveis) que podem ser aplicados à causa.

RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA: QUE LEI É APLICADA?

Filiamo-nos aos ensinamentos do brilhante desembargador e professor Miguel Kfouri Neto.

Entendendo pela aplicação do Código Civil na relação contratual entre médico e paciente e no que tange à responsabilidade civil do médico.

Se o paciente está em condição de vulnerabilidade, o médico também está em uma posição de autocolocação em risco (não apenas jurídico, mas também biológico, p. ex., na pandemia) ao realizar seu trabalho.

Entretanto, há aqueles que, sobretudo após a elevação do dano moral à hierarquia Constitucional (artigo 5º, V e X), defendam a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às demandas de responsabilização do médico, como o também brilhante professor Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas.

Importante perceber, neste ponto, que estamos falando sobre a aplicação ou não de uma Lei (neste caso, o Código de Defesa do Consumidor) à relação médico-paciente, e não à adoção da responsabilidade subjetiva ou objetiva.

Assim, é preciso bastante cautela e atenção. O Código de Defesa do Consumidor apresenta inúmeros dispositivos que podem impactar de maneira decisiva a demanda em que o médico figure como réu, como, por exemplo, a proteção contra a publicidade enganosa e a inversão do ônus da prova (artigo 6º, IV e VIII do CDC, respectivamente).

Você, médico, não deve subestimar a importância de um termo de consentimento informado bem redigido, pois, muito embora responda de forma subjetiva, o ônus de comprovar a transmissão das informações de forma clara, correta, completa e objetiva, é seu.

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